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Transplante renal em gatos

Por:

Dr. Victor Soares

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28/02/2023

Entre os veterinários costumamos dizer que a nossa medicina está uns vinte anos atrasada em relação à medicina dos humanos e talvez uns dez anos atrasada em relação à medicina veterinária praticada nos Estados Unidos. Por isso gosto de ler o que está acontecendo por lá e ver quais novidades vem surgindo para me manter atualizado e mais ainda, ansioso para o que pode ser a nossa realidade daqui uns anos em relação à exames, novos fármacos, tratamentos e etc . 

Uma das minhas leituras mais interessantes de ultimamente não foi nenhum artigo científico, mas sim uma reportagem do The Atlantic, uma revista literária/cultural em que a repórter Sara Zhang relatou o que ela aprendeu sobre transplantes renais em gatos, e trago aqui um pouco do que a reportagem aborda e minhas considerações. Deixo o link para a matéria completa no final deste texto.
A reportagem apresenta o cenário e realidade dos transplantes renais em gatos a partir da experiência da repórter conversando com um professor universitário responsável pelo procedimento e também com tutores de gatos já transplantados.
Nos EUA vem crescendo o número de transplantes conforme amadurece o conhecimento e domínio técnico do procedimento em algumas universidades.
Na teoria, a demanda seria sempre infinita. Para quem não sabe, a espécie felina é altamente predisposta a ter insuficiência renal e essa é a principal doença que acomete gatos causando números elevadíssimos de morbidade e mortalidade.
No consultório costumo falar que quando o gato está ficando velhinho, o primeiro órgão que dá sinais de cansaço e que não quer funcionar mais é quase sempre o rim. Em alguns casos infelizmente os rins nem esperam o gatinho ficar velho, já vão parando de funcionar mesmo na juventude, se a genética desse animal pesar muito nesse sentido.
Eu já perdi pacientes de 2 anos de idade que os rins deles simplesmente não funcionavam, o que levou esses gatinhos a definharem e irem a óbito. É o que chamamos de doença renal juvenil.
Aqui no Vet Domus, 30% dos gatos internados tem algum problema do sistema nefro-urinário, e quase 40% dos pacientes com doença renal crônica vem a óbito ou são eutanasiados, o que nos prova que é uma doença tão comum quanto trágica. Quem sempre teve gatos ou já teve algum gatinho em fase de senilidade sem dúvidas já passou a experiência de cuidar de um doente renal e sabe do que eu estou falando. 

Portanto, se tratando de uma doença tão comum e associada a diversas complicações, quais seriam as soluções para driblar esses problemas? O que a medicina humana nos apresenta? 
Na veterinária, diferente da medicina de humanos, nós não temos fácil acesso e com boa eficiência o tratamento por hemodiálise, em que basicamente há uma máquina que faz o trabalho dos rins de filtrar o sangue eliminando toxinas e células indesejadas pelo organismo.
São poucas máquinas disponíveis, o animal precisa ficar internado e com um cateter específico, realizar algumas sessões em dias seguidos, o que torna o procedimento caro e nem sempre tem resultados efetivos. Claro que existem alguns centros veterinários que realizam o procedimento e podem até conseguir bons resultados, mas os custos, os trâmites e os requisitos para que o animal esteja elegível a passar pela hemodiálise impossibilitam que seja um recurso acessível.
Então, como substituir a função do rim por um aparelho que faz o mesmo trabalho, assim como fazem com pessoas, não é viável para o tratamento dos nossos amigos felinos, então a ciência foi atrás da solução com o transplante renal, substituindo, literalmente, um rim afetado por outro em pleno funcionamento.
A grande polêmica que envolve esse tratamento é que o rim não pode ser obtido em uma remoção pós morte. 

Tem que vir de outro gatinho, jovem, vivo e saudável.
Ou seja: um gato, que já é de uma espécie predisposta a ter insuficiência renal, teria que perder um dos seus rins, para que algum outro gato em situação de falência renal receba esse rim.
As controvérsias são inúmeras e para minimizar a polêmica estipularam que os doadores seriam gatos sem donos, de um abrigo na própria universidade e o principal contraponto favorável ao doador seria de que a família do animal recebedor do rim fosse OBRIGADA a adotar o animal doador.

A argumentação em defesa do procedimento se baseia basicamente no fato de que um gato que viveria sua vida em um abrigo ou laboratório universitário sem um ambiente amável e familiar, ao doar um rim pudesse ascender ao patamar de um gato adotado e ter uma família que nunca teria se não fosse um doador.

Para o gato, é mais vantagem ter dois rins e viver sua completa expectativa de vida na rua ou abrigo, sem uma ambiente familiar ou viver numa casa, ser cuidado e amado por uma família mas com um rim a menos e ter sua expectativa de vida diminuída? 

Não acredito que haja uma resposta certa para essa pergunta e nem que algum felino irá responder em nome da espécie tão cedo.
Nas pesquisas para escrever esse texto, procurei com artigos científicos entender melhor e com estudos retrospectivos a expectativa de vida de gatos pós transplante, porém o material é muito escasso.
Encontrei muitos artigos contestando eticamente o procedimento e pouco material técnico falando sobre a vida pós transplante em doadores e receptores. 

Ao que parece a expectativa e qualidade de vida de ambos não são das melhores. 

O doador pode viver em um bom estado geral tendo somente um rim, porém se a qualidade de vida não é tão comprometida, não podemos esperar que a longo prazo seja um animal muito longevo. Com uma grande predisposição à doenças do trato nefro-urinário, a hora que alguma doença renal afetar esse gato, não vai ter o outro rim para segurar a barra e compensar o que seja falho. Portanto é quase inevitável que esse gatinho tenha insuficiência renal de forma precoce. Alguns anos da sua expectativa de vida vão embora junto do rim retirado dele. 

Os recebedores podem ganhar uma sobrevida de pouco mais de um ano, mas não é somente o procedimento cirúrgico que garante esse resultado. O paciente transplantado precisa de um acompanhamento rigoroso para que não haja rejeição do organismo ao novo órgão. Por isso, precisa regularmente de visitas ao veterinário, muitos e muitos exames para acompanhamento além de medicações imunossupressoras de uso contínuo.

Sabemos que gatos são muito afetados pela quebra de rotina e por intervenções no geral. O ambiente veterinário, contenções, coletas de sangue, deglutir um comprimido que é enfiado goela abaixo, até o transporte pode ser fator estressor. É indiscutível que apesar dele ganhar meses ou alguns anos de sobrevida, o gatinho perde em qualidade de vida por ser submetido a uma rotina conturbada e nada tranquila. 

Pessoalmente vejo essa questão como das primordiais no debate se devem ser realizados transplante renal em gatos, pois vai no sentido oposto de algo que prezo muito no meu atendimento:

Para animais velhinhos devemos acrescentar mais vida aos seus dias, e não mais dias à sua vida.

Quem se beneficia com esses anos a mais? O gato que vive por mais tempo mas que precisa constantemente de intervenções, exames e procedimentos? Ou a família que tem dificuldade de encarar a finitude do seu bichinho de estimação? 

Os questionamentos não param por aqui. Críticos do transplante põem ainda mais lenha na fogueira dizendo que o procedimento não deve ser realizado já que os principais envolvidos não podem emitir opinião. Pois é!
O animal que perde um órgão e consequentemente anos de sua expectativa de vida não tem poder de escolha. Ele não pode refletir e tomar uma decisão. Não escolhe se quer doar seu rim ou não. 

Ok, você pode estar questionando que um animal também não escolhe se quer ser tosado ou não, se vai ter as unhas cortadas ou se vai tomar 30 dias de antibiótico contra uma doença. São coisas que nós como tutores impomos a eles. Porém a imensa maioria das intervenções que fazemos, mesmo com relutância e a nítida desaprovação deles, são (quase) sempre visando benefícios. 

Quantas vezes não dizemos ao bichinho se debatendo contrariado na mesa do consultório "calma que é pro seu bem" ?

 

Vendo por esse lado a castração também pode ser considerada uma cirurgia mutilatória. Removemos órgãos sexuais/endócrinos importantes sem o consentimento deles com o argumento de que existem comprovações científicas que o procedimento é benéfico e visa melhor qualidade e maior expectativa de vida. 

Em alguns países como Suíça, Dinamarca e Suécia essa mesma polêmica sobre o consentimento e cirurgias em animais é bastante debatida em relação a castração.

 "Se eles não podem escolher, não devemos fazer", dizem os defensores da mínima intervenção contra a natureza do organismo.
Quais tipos de intervenção são justificáveis quando estamos em posse de um animal de estimação? Pintar as unhas, passear de mochila, cortar orelha, aplicar microchip, amputação de uma pata, passar por quimioterapia… Os tópicos são infinitos.

Controvérsias à parte, a demanda pelo transplante cresce constantemente e cada vez mais hospitais e centros universitários se capacitam para realizá-lo.
A doença renal crônica é uma doença frustrante que tem difícil controle, mas não tem cura.
Ao cuidar de doentes renais crônicos já testemunhei todo tipo de conduta e decisão por parte da família, para ganhar um dia que seja a mais com seu melhor amigo. Diante desse cenário quase incontornável, não me espanta que as pessoas não meçam esforços nem dólares para realizar um transplante no seu gatinho para ganhar um ou dois anos. 

Não acredito que haja uma forma mais correta e ética para enxergar e tratar o assunto.
O transplante renal em gatos pode gerar um ciclo de questionamento e debates intermináveis, mas já está em jogo e talvez chegue no Brasil nos próximos anos.


Link da reportagem:
https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2022/12/paying-for-pet-critical-care-cost-health-insurance/671896/

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